domingo, 2 de junho de 2024

Morfologia

"Você é o tipo de pessoa que vive melhor sozinha." Foi isso o que eu ouvi. Mais doído do que ouvir, foi constatar que, por muitos anos, eu acreditei nessa adjetivação com cada canto do meu insconsciente e até a transformei em parte do verbete de quem eu sou, se assim fosse possível encontrar meu nome em uma folha de dicionário. Até que despertei. Ou melhor, fui despertada. Lá na página com palavras com P do dicionário, havia a Possibilidade: possibilidade de que esse pensamento infeliz talvez falasse mais a respeito de quem o proferiu do que de mim, e essa descoberta me fez estudar assiduamente as palavras. Se as compreendesse melhor, menor seria o dano provocado por elas. Do meu estudo resultou que: a expressão "despertada" se justifica, porque 1) foi preciso disposição, força de vontade, coragem e dedicação pra aprender a separar as vozes que me formam das que me atravessam, mas não falam verdadeiramente de mim; 2) o meu acreditar foi coletivo - a resposta para solidão sempre está no coletivo. Como pode haver tanta importância na classe de palavras? Sozinho é adjetivo. Solidão é substantivo. Despertar é verbo. Dois não é substantivo, é numeral, mas se fez coletivo no momento em que muitas vozes se erguiam e se misturavam, impossibilitando qualquer discernimento. Ao me despertar para você, acabei despertando para mim e para nós e, desde então, esse pronome tem sido uma das minhas palavras preferidas do português. No nosso coletivo de dois, a análise morfológica não se explica: amor não é abstrato, é concreto, e “te amo” é uma conjugação verbal pra qual ainda não se inventou tempo, porque o pretérito, o presente e o futuro ainda é muito pouco perto do que eu desejo para nós.

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